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A CARTOMANTE

Atualizado: 5 de jul.

Conto 'A Cartomante' de Machado de Assis, publicado originalmente dia 28/11/1894, na Gazeta de Notícias.





A Cartomante

 

HAMLET observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que

sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao

moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela,

por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia

por outras palavras.

— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que

fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe

dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora

gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as

cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você

me esquecesse, mas que não era verdade...

— Errou! interrompeu Camilo, rindo.

— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua

causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...

Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe

queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso,

quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois,

repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela

podia sabê-lo, e depois...

— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.

— Onde é a casa?

— Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa

ocasião. Descansa; eu não sou maluca.

Camilo riu outra vez:

— Tu crês deveras nessas cousas? perguntou-lhe.

Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que

havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não

acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que

mais? A prova é que ela agora estava tranquila e satisfeita.

Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as

ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um

arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos

desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e

ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os

ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação

total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não

possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque

negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do

mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.

Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser

amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele,

correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de

sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos,

onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das

Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da

Guarda Velha, olhando de passagcm para a casa da cartomante.

Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação

das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela

seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a

vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo

preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No

princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama

formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado.

Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.

— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como

meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor.

Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras.

Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não

desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos,

olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que

ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis.

Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher,

enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a

ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de

alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.

Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a

mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes

amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita

tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.

Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que

gostava de passar as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase

uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o

que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam

os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as

damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser

agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os

olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os

consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas.

Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente e

de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então

que ele pôde ler no próprio coração, não conseguia arrancar os olhos do

bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo

menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez

passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo.

Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.

Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma

serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos

num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e

subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a

batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o

sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados,

pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada

mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A

confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.

Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava

imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve

medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de

Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma

paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se,

e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso

um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do

marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.

Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante

para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo.

Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a

por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu

mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser

advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião

de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento:

— a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse

é ativo e pródigo.

Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse

ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que

era possível.

— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das

cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...

Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se

sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao

outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à

casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de

algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses

era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se,

sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se

corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.


No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de

Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de

meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural

chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a

letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas

essas cousas com a notícia da véspera.

— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com

os olhos no papel.

Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e

lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo

de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha

medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a ideia de

recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar

algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem

ninguém. Voltou à rua, e a ideia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez

mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa

que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma

suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto

fútil, viria confirmar o resto.


Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as

palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, — o que era

ainda pior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela.

"Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela

voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê?

Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto.

Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo.

Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando

que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois

rejeitava a ideia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção

do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou

seguir a trote largo.


"Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..."


Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo

voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da

Guarda Velha, o tílburi teve de parar, a rua estava atravancada com uma

carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No

fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi,

ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele

desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando

todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua.

Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.


Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era

grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns

fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O

cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho: ele

respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois

fez um gesto incrédulo: era a ideia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao

longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e

tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a ponco moveu outra vez as asas,

mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens,

safando a carroça:


— Anda! agora! empurra! vá! vá!


Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos,

pensava em outras cousas: mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as

palavras da carta: "Vem, já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia.

A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar. Camilo achou-se

diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de

tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos

extraordinários: e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe

dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia... " Que

perdia ele, se... ?


Deu por si na calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e

rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus

comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não, viu nem sentiu nada.

Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve ideia de descer; mas era

tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele

tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante.

Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por

uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma

salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos.

Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do

que destruía o prestígio.


A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com

as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no

rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e

enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de

rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana,

morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas

sobre a mesa, e disse-lhe:


— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande

susto...


Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.


— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não...


— A mim e a ela, explicou vivamente ele.


A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra

vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas

descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas. três vezes;

depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela curioso e ansioso.


— As cartas dizem-me...


Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe

que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro;

ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela:

ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de

Rita. . . Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as

cartas e fechou-as na gaveta.


— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por

cima da mesa e apertando a da cartomante.


Esta levantou-se, rindo.


— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...


E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu,

como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante

foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho

destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de

dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha

um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava

o preço.


— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer

mandar buscar?


— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.


Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante

fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.


— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do

senhor. Vá, vá, tranquilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...


A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele,

falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a

escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava

acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua

estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.


Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o

céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que

chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram

íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu

também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser

algum negócio grave e gravíssimo.


— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.


E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa;

parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à

antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as

palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o

estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O

presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as

velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o

com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado;

mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá,

vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e

graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos,

uma fé nova e vivaz.


A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas

felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo

olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão

um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo,

interminável.


Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro

do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra,

e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.


— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?


Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e

foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito

de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada.

Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no

chão.


FIM


Fonte: A Cartomante, Machado de Assis

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar [1959]1994. v. II.

Texto proveniente de:

A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>

A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo

Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por:

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística

Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para <bibvirt@futuro.usp.br>.


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