Prefácio da edição 1 da Cazimi - Revista de Astrologia
O Sol, gigante pela própria natureza, submete os Errantes, os Planetas, a três distintas situações dramáticas: os raios, a combustão e o cazimi.
Estar sob os raios do Sol quer dizer estar sob os domínios do Rei mas não ao ponto de perder ou derreter a própria autoridade, identidade ou nome. É quando, por exemplo, um poeta consagrado divide a letra de uma canção com o poeta que o admira e ambos ganham e perdem. A angústia da influência verga, mas não cede. No melhor do cenário, há uma admiração mútua e certamente uma filiação: é quando o filho é pai do pai. Em tese isso acontece quando qualquer planeta está entre 8 e 15 graus de longitude distante do Sol.
Já a combustão, quando o Errante está até 8 graus do Astro Rei, o planeta entra em ruína e liquefaz-se, entra em combustão. E é eclipsado inteiramente. E quanto mais perto do Sol, maior a agonia. A dominação solar se faz inequívoca. E todos perdem. O filme Copacabana, Mon Amour (1970) de Rogério Sganzerla, com Helena Ignez no papel principal, descreve bem o que é viver sob a combustão em um país tropical: a razão derrete como queijo na chapa quente do asfalto carioca. William Lilly, o astrólogo inglês do século XVII, tão citado nas páginas que seguem, dedica um capítulo inteiro do seu Christian Astrology a esse fenômeno. Mas o que eu queria ver mesmo era Lilly derretendo pela orla de Copacabana.
Porfírio (séc. III) diz que a combustão é mitigada quando o Errante reina em seu domicílio, exaltação, termo e/ou triplicidade. Nessa situação, diríamos que o planeta está na Carruagem do Sol. Em outras palavras, o Sol conduz o passageiro a seu destino, mesmo que o carro esteja em chamas.
Agora, há uma chance, praticamente um milagre, oferecido a qualquer um dos Errantes, independente da sua condição ou status celeste. A temperatura pode até aumentar, mas o calor solar já não é mais capaz de arruiná-lo. Equivale encontrar paz na tormenta, habitar o olho do furacão, ser recebido no coração da vida. Esse milagre chama-se cazimi.
Em árabe 'coração' é galb, mas em urdu é ka samin, sendo samin 'válvula' e ka 'feito de'. Ka samin = 'feito de válvula'. Urdu tem alfabeto árabe. Mas dizer que algo está no coração do Sol é herança da astrologia helenística. Rethorius (séc. VI) chama de Ekgardio que, em grego, quer dizer, 'no coração'. Em Astrologia é quando um Errante está até 17 minutos de longitude distante do Astro Rei. Exemplo: Sol a 3 graus do Leão e Mercúrio a 3 graus e 17 minutos do Leão. Nessa condição, dizemos que Mercúrio está em cazimi.
O cazimi é ainda mais perfeito, e mais raro, quando a latitude, a declinação, é a mesma. Para Bonatti (séc. XIII), por exemplo, o cazimi só acontece mesmo nessas condições, isto é, quando a longitude e a latitude, ambas, encontram-se até 16 minutos distante do Sol. Exemplo: Sol a 18 graus e 58 minutos do Escorpião, a 17 Sul 17, Mercúrio a 18 e 53 do Escorpião, a 17 Sul 23, longitude e latitude, respectivamente.
Na forja do Sol, em cazimi, o metal do que é feito o planeta é purificado. Em outras palavras, as impurezas secam e a natureza do Errante é refeita. Ao se aproximar da gema do mundo, o que ali dura, permanece, e, assim, se ganha um coração perene. E todos ganham.
A situação de cazimi, por durar poucas horas, o faz ser hora preciosa para criação de amuletos e remédios. Quanto mais raro o momento celeste, mas poderoso o tempo à Terra. Criar um encantamento para Vênus em seu dia e hora, quando essa está em cazimi e na carruagem, é para assentar na alma, no corpo e no espírito a boa sorte para todo sempre. Cazimi é um feitiço do Tempo.
O primeiro mundo que todo bruxo, cozinheiro ou escritor deve conhecer à exaustão é o fogo. E como todo tradutor do Céu é escritor, a receita é a mesma: é preciso aproximar o vate da chama. E fazê-lo sofrer.
Suar.
Retorcer.
Flambar.
Queimar.
Tostar.
Torrar.
Coagular.
Somente perto do fogo, dentro dele, veremos de que metal o vate é feito. É preciso conhecer o fogo, seus humores, seus tormentos. E, se tiver sorte, em cazimi com o Sol, escutar a voz do metal.
É o que verá nas páginas que seguem: gente colocando-se em situação de escrita, perto do frio e do fogo das ideias, buscando o páthos do que se quer e do que não se quer, correndo o risco de liquefazer-se na lava do argumento e, de quebra, lascar a chance áurea de transformar a matéria da astrologia e a si mesmo. “Não se incomode / O que a gente pode, pode / O que a gente não pode, explodirá / A força é bruta / E a fonte da força é neutra / E de repente a gente poderá” (Gil).
A partir de hoje, Cazimi também é o nome da revista de estudos, traduções e ensaios de astrologia que tem em mãos. É uma publicação da Saturnália - Escola de Astrologia & Cidade e da Editora Pogo, que também nasce nesse momento. Neste primeiro número, escritos de estudantes e professores da escola. Mas é importante dizer que a Cazimi é uma revista a serviço da comunidade astrológica como um todo e à Astrologia entendida como Literatura. É o que reclamamos com essa publicação: o lugar da Astrologia no reino da palavra. Lugar esse ocupado por Manílio (séc. I), um dos patronos espirituais da Saturnália. E é ao seu lado que queremos nos manter.
A Cazimi é uma edição bilíngue: português & inglês. Nessa primeira edição, uma ‘Volta ao Zodíaco em 12 Autorias’, a qual começamos pela dedicatória da primeira versão que chegou em minhas mãos: “Estão reunidas nas próximas páginas o número de doze textos escritos, cada um deles assinado por um ou uma estudante da Saturnália – Escola de Astrologia & Cidade, em razão da comemoração dos 10 anos desse projeto que como um céu nos ilumina diariamente através de lições de grandiosidade, astrologia e amizade. Para o mestre João Acuio, com carinho”.
Realmente as três últimas décadas da minha vida foram dedicadas à construção de uma astrologia brasileira fundamentada na tradição (“Um rio que desconhece sua nascente já nasceu morto”), à presença das musas e do rigor técnico (“As musas vêm antes das técnicas”; “As técnicas dentro das técnicas”), à reflexão da prática e à prática ética (“A Astrologia não é apenas uma arte para tecer sobre a Fortuna, mas também para cultivá-la”), ao ensino e à pesquisa, ao Destino sitiado por Eros e por Thánatos (“O mistério sempre há de pintar por aí” - Gil) e, não menos importante, à coragem de reler a tradição astrológica em língua portuguesa, com a poética, a cidade e a magia como Daemons. E, por isso, posso dizer com sincera satisfação solar, que sou eu que tenho a sorte grande de tê-los como meus mestres e mestras de vida. Então, mais uma vez, eu que agradeço! Eu que agradeço! Adupé o!
O signo de Áries ficou a cargo de Bruno R. Lima, o que leva o texto ao Maracanã, ao som de Jorge Ben e dos tambores da Bahia de Todos os Santos, essa mistura de Brasil com Egito. Arrepia, Carneiro! Em seguida, Aline Higa e sua busca do cazimi entre a Gastronomia e a Astrologia. Em sua panela, Touro e o modo libidinoso de preparo do texto celeste sem pressa. Gêmeos, Os Irmãos, isto é, As Crianças, ficou com a Nathalia Isadori Pucha, a que brinca com as palavras como se pulasse corda. O Caranguejo e o seu gestar das horas da vida, com a poeta-astróloga Mariana de O. Campos. É uma sorte radical saber que tem gente que não distingue poiésis de Fortuna. Leão, com o seu coração, garras, pelos e dentes, por Renata Asato, que avança aos primeiros modos de como lamber a linguagem astrológica, isto é, de como levar Destino à boca de Eros e vice-versa. Virgem ficou com o virgo Bruno Ueno, o que tem a maestria e a mira de unir mil e uma vozes numa mesma prosa. Libra, a cargo de Analu Bambirra, que balança entre a arte e a política, os fiéis da Balança da nossa escola. Escorpião, o Lacrau, sua história em noites de climão, por Thamires Sarti, a que tem Regina, para nossa sorte, no coração do seu próprio nome. Daniela Figueiredo, a que olha o céu com olhos livres e mira trajetórias em seu veleiro imaginário onde cabe nada menos que o mundo, escreve sobre o marco civilizatório que Sagitário representa. “Para ser gente é preciso ser mais do que gente”, ensina. Capricórnio, A Cabra, e seu enigma, pela astróloga Ana Thomazini Racy, a que tem uma lira da cor do chumbo com cordas de aço. Julia Garcia de Oliveira nos apresenta Aquário e seu surpreendente destino carnavalesco, a qual o mundo, todo ano, faça chuva ou faça sol, entra em cazimi. “Só não vai atrás do trio elétrico quem já morreu” (Caetano). Pisces é o texto pescado nos céus por Michelle Peixoto, que nos leva a um mar de significados que rodeiam o mais liso e místico dos signos, Peixes. E aí voltamos ao início.
Qasim, em árabe, 'aquele que faz um juramento'. Acrescente um i e teremos qasimi, cazimi, que pode ser entendido, portanto, por “aquele que tem certeza absoluta” e, por isso, capaz de jurar “em nome da minha mãe”, “em nome de deus” etc. Quando um planeta está em cazimi, na forja do coração, ele jura, em suma. Com fervor.
Gente da África, quando em situação de juramento, morde um pedaço de ferro, o que equivale dizer que “se o meu juramento é falso, quero que o deus do ferro e da guerra me puna”. Agora imagine um coração de ferro. É assim que a Saturnália – Escola de Astrologia & Cidade, oferece ao mundo a Cazimi – Revista de Estudos, Traduções e Ensaios de Astrologia – essa é a nossa jura.
E, por fim, quero agradecer à Mariana de Oliveira Campos por ter capitaneado os 12 textos que abrem o caminho dessa primeira edição. A Bruno Lima pelas sugestões sempre pertinentes. À Juliana Bratfisch, pela primeira revisão. A Carlos Barbosa pela segunda. À Mayra Soares pela revisão do prefácio. À Margit Leisner pela saga da versão para o inglês. À Laura Berbert pelas ilustrações que abrem cada capítulo. À Pryscila Vieira pelo projeto gráfico. À Aida Qaddomi, Sara Ajlyakin e Sami Douek, por ampliarem as possíveis origens da palavra cazimi. À Thamires Sarti por ter ampliado a voz dos textos em seu podcast Astrologuês. À Silvia Rosa e Aline Higa por receberem a Cazimi no coração de Dioniso. À Ingrid Faustino pelo pronto apoio. E à Maria Ravazzani pela leitura sempre atenta. Aos autores, por serem o que são e por estes singulares textos feitos com tanto coração, esmero e espírito de pesquisa. E, por fim, aos leitores.
Vida longa e verdadeira a todos e a cada um.
Evoé, Cazimi! Ió, Saturnália!
João Acuio
PREFÁCIO DA EDIÇÃO 1 da Cazimi - Revista de Astrologia. A número 1 está esgotada, mas você pode encontrar as demais clicando aqui.
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