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Um tarot para Sandman - texto 2

Atualizado: 18 de ago. de 2022

TEXTO DOIS DE UM TAROT PARA SANDMAN





O SOM DE PODEROSAS ASAS (ou: um texto sobre cachorros)


[Eu sugiro que você ouça essa música enquanto lê. É apenas uma sugestão. https://youtu.be/hlgc3_4WL0M]

“Eu não queria uma Morte que sofresse pelo seu papel, ou tivesse um prazer mórbido com seu trabalho, ou que não se importasse. Queria uma Morte que eu fosse gostar de encontrar, no fim. Alguém que se importasse. Como ela.” Neil Gaiman | Morte: Edição definitiva. p. 264.


Segunda feira e cá estamos para uma nova Conversa Cartomântica no Saturnália. Hoje, em que recém comemoramos oito anos de Saturnália, recém entramos em uma lunação de Leão, vamos falar sobre a mais querida entre os Perpétuos.

Novamente, esse texto pode conter spoilers. Leia por sua conta; não me mate por isso.


Death no original, Morte na tradução. Há uma peculiaridade na escolha original dos nomes dos Perpétuos: todos começam com D – são os 7 D. Por isso, reza a lenda, o Tempo (Time) não entrou no elenco original. Para os fãs mais puristas, não se fala Morte: é Desencarne, assim como seu irmão não é Sonho, mas Devaneio. Não é o nosso caso.

Apresenta-se como uma jovem, algo punk, algo gótica, minimalista: veste preto sobre uma pele mui branca. Seu símbolo é um Ankh, que traz ao pescoço, prata sobre preto; você já reparou o quanto o Ankh se parece com um laço, com um abraço?


“O Universo já era. É meu trabalho colocar tudo em ordem agora e trancar o lugar antes de partir.” Morte | Morte: Edição definitiva. p. 291.


Assim como a mais querida, Morte é, sem dúvida, a mais poderosa (se assim podemos dizer) entre os Perpétuos. Infere-se, da leitura de Sandman, que, quanto mais velho o Perpétuo, maior sua área de atuação, ou, por assim dizer, seu poder. Destino foi o primeiro, e tudo (?) está em seu livro. Entretanto... É a Morte a última a partir quando tudo terminar. É Ela quem irá apagar a luz e fechar a porta. Além disso, ela tem livre passagem em quaisquer reinos e realidades, inclusive os que pertencem aos seus irmãos.

A Morte é o ponto final.

Nenhum dos Perpétuos – nem mesmo Desejo – desafia a Morte. Sua palavra é ouvida por todos. Talvez – talvez... – porque todos os Perpétuos, em alguma instância, levem os seus assuntos para Ela. Então, após essa apresentação, eu busco a primeira carta por sinonímia. O Arcano XIII do Tarô, a Morte, Il Tredici, aquela que não pode ser nomeada. Essa carta está entre as mais temidas do baralho, e também entre as mais modalizadas, suavizadas, relidas: “Você sabe que a carta XIII é positiva, não é? Ela fala de transformação...” também.

Que ninguém se esqueça: Morte é Morte. E as palavras tem poder. Assim como os Nomes.

Eu sorrio, Ela gargalha. Houve um tempo em que ela detestava seu ofício.


“Certo dia, uma garotinha olhou para mim quando eu a levava, toda fria, distante e recriminadora, e então perguntou: ‘e você ia gostar disso?’... Foi tudo o que ela disse, mas me magoou e me fez pensar.” Morte | Morte: Edição definitiva. p. 226.


E então, ela decidiu viver um dia por século, só para se lembrar o que é o morrer, quando estivesse próxima de esquecer.


“Aí, depois do primeiro dia de vida, quando me encontrei, virei para mim mesma e disse que eu era uma puta desalmada, arrogante e frígida... só que eu falei de um jeito muito pior.

E eu captei a mensagem.” Morte | Morte: Edição definitiva. p. 226.


E eu também captei. No afã de tornarmos tudo palatável, bonito e delicado, esquecemos que o amargo, o feio e o gore também fazem parte da vida. São possibilidades, são escolhas. São caminhos. E todos os caminhos levam a Ela, passando pelo jardim de seu irmão mais velho.


“Ela o traz para perto de si. Das trevas, ouço o bater de poderosas asas...”

Sonho | Morte: Edição definitiva. p. 26.


A figura de Desencarne, porém, não é, em nenhum momento, em Sandman, associada ao esqueleto sob o manto. Ao contrário, é a beleza da passagem, a beleza da paisagem. Sua natureza implacável lembra a Justiça. Ou, como quis Crowley, o Ajustamento.

Pingos nos iii, preto no branco, prata sobre preto. Assim como a iconografia da Justiça, em que há autores e ilustradores que enxergam asas no espaldar do trono, a Morte, em Sandman, tem asas, que não se veem – mas cujo ruflar é audível. O lugar para onde Ela leva quem Ela leva, as Terras Sem Sol, é um lugar que não se sabe. É um lugar que não sabemos se está no Livro do Destino (e por isso aquela interrogação no começo do texto – eu não li o livro), mas que está, de algum jeito, no livro que a Sacerdotisa tem no seu colo. A Sacerdotisa, como a Morte, sabe coisas que não sabemos, coisas que somos pouco capazes de saber, coisas que até mesmo Ela não sabia sobre si mesma até ceder a sua própria dádiva. E então, ela compreendeu.


“Sabe, quando alguém morre, na maioria das vezes, essa pessoa está meio abalada, magoada, furiosa, ou pior.

E tudo de que ela precisa é de uma palavra amiga, de um rosto amigável. (…) No fim, cada um de nós se vê desnudado.

No fim, cada um de nós está sozinho.”

Morte | Morte: Edição definitiva. p. 227.


Junto minhas cartas. Me despeço e ouço Ela dizer, entre os dedos sobre os lábios em um beijo:


“Então, a gente ainda se vê.”


REFERÊNCIAS

Morte: Edição definitiva. Barueri, SP: Panini Books, 2014.

EPÍLOGO: Eu ainda não falei sobre cachorros...


Ah sim, quase ia me esquecendo: Hoje eu vou falar de cachorros. Porque os cachorros são algum tipo de amor tão forte que precisa de quatro patas para sustentar aqueles olhos que dizem tudo. E de bem menos tempo que a gente para se tornarem completamente inesquecíveis. E porque eles fizeram parte da pesquisa para esse texto, também. [“hoje eu morri”, por Duke Roberts: https://goo.gl/yf6dvh] Hoje eu lembro de Cabal, o cão de Neil Gaiman, para quem ele dedicou o primeiro texto dele que eu li. [se você ler em inglês: https://goo.gl/N1yb8D] Eu conheci Neil Gaiman chorando pelo Cabal. E sim, essa frase pode ser lida dos dois jeitos.


Emanuel J Santos


"(este texto foi publicado originalmente aqui: https://www.facebook.com/Saturnalia/photos/a.10150369632207293/10155401191102293/; a imagem é de autoria do Emanuel; o Corvo da Saturnália foi criado pelo Gabriel Breviglieri).

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