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Foto do escritorEmanuel Santos

Um tarot para Sandman - texto 3





UM ELMO, UM RUBI E UMA ALGIBEIRA DE AREIA

Segunda feira, dia da Lua, dia dos sonhos. Recém chegado da Confraria Brasileira de Tarot, eu, Emanuel J Santos, decido escrever na hora dos Sonhos - quase a meia noite. Há alguém acordado aí, sonhadores? Chegamos ao terceiro texto de nossa série de sete, o texto sobre o Sem Fim mais bem documentado: Morpheus, o Sonho dos Perpétuos. O protagonista da história e o referencial para o entendimento de toda a narrativa.

Um equívoco. As pessoas ainda nascem e morrem, mas há quem sonhe demais, há quem não sonhe mais. E há um Perpétuo sedento por vingança. Esperando pacientemente, preso em um globo de cristal. Assim começa Sandman, a série, que nos apresenta Sonho, ou Devaneio, dos Perpétuos. Como os Perpétuos transcendem as ideias de tempo, espaço e crença, estando presentes em todo o universo conhecido (e desconhecido para quem não leu o livro do Destino), sabemos sobre eles apenas aquilo que somos capazes de saber – em setenta e cinco edições. Mesmo que, infeliz ou felizmente, pouco sejamos capazes de reter. Como um sonho que passa quando acordamos, e que tentamos, em vão, reter como areia entre os dedos. Por isso, eu reli mais de uma vez, e sugiro o mesmo a você, querido leitor. Pode-se dizer que a história de Sandman é a história de Morpheus (1). Sendo assim, acredito que poderíamos fazer um Tarô só para ele, baseado em sua Jornada do Herói; se fôssemos fazer um Tarô de Morpheus, só de Morpheus, você teria sugestões para as cartas? Entretanto, é necessário fazer um recorte, e eu escolhi o primeiro arco, que vai da primeira à sétima edição. O Oniromante é apresentado a nós, e nós o lemos em cartas de um Tarô. Como todos os textos dessa série, possivelmente haverão spoilers, ou não. Leia como se fosse um sonho desperto, e esqueça o que leu até ler de novo.

Cada lugar tem um sonho diferente, e conta sua história para quem souber dar atenção. John Constantine | Demoníaco Vol. 4: Na linha de fogo. p. 116.

A aparência mais recorrente de Morpheus é a de um homem magro, pálido e de cabelos desgrenhados, uma representação muito coerente do humor melancólico, por assim dizer, se não fossem os cabelos. Até aí, nada que não encontremos em uma volta por um grande centro. Entretanto, ele possui os olhos repletos de estrelas, constelações e galáxias. Olhar nos olhos de Morpheus é contemplar o céu noturno refletido num lago. Você já olhou diretamente nos olhos de um Deus?

“O Mundo dos Sonhos é infinito, embora seja demarcado por todos os lados. O caminho para o centro é uma espiral. Passamos pela Casa dos Mistérios e pela Casa dos Segredos... Velhas estações nas fronteiras do pesadelo... De lá, seguimos em direção à Noite, até alcançarmos os Portões de Chifres e Marfim. Eu mesmo os entalhei, quando o mundo era mais jovem e a ordem necessária. (...) Os sonhos que atravessam os Portões de Marfim são mentiras, fraudes, invenções. O outro, de Chifres, admite a verdade. Ninguém mais guarda os Portões de chifres. Do outro lado, posso ver meu castelo.”

Morpheus | Sandman #02

Seu reino é o Sonhar. Neste espaço naturalmente onírico, todos os sonhos e pesadelos e ideias e planos e projetos iniciados e nunca terminados existem e estão registrados, seja em livros – em uma biblioteca muito bem cuidada por Lucien e razoavelmente limpa por Mervyn Pumpkinhead, o Merv; seja na própria tessitura do espaço do Sonhar – inclusive, o coração do Sonhar, um senhor muito bondoso chamado Fiddler's Green, é na verdade o jardim mais bonito que você nunca irá conhecer. Há também os irmãos Caim e Abel, uma representação do que há de mais sádico e do que há de mais masoquista na imortalidade. Há Coríntio, o primeiro e o segundo, o pesadelo que você nunca irá esquecer. E há Matthew, o Corvo. Matthew já foi humano, um dia desses. Por ora, é o mensageiro do Sonhar. Mas ele aparece aqui em todas as histórias no símbolo do Saturnália, você viu? Todos os corvos partilham de um mesmo negrume. Todos os corvos são um.

Em sua prisão, Morpheus perdeu três itens, três vezes roubado de uma só vez. E recuperou todos eles, de um jeito ou de outro. Isso me lembra, e muito, o Tarô Furtado, desenvolvido pelo João Acuio, cá do Saturnália, e será o nosso acompanhante nessa narrativa, dado ser originado de um Tarô de Marselha – nomeadamente, um Jean Payen. Em momento oportuno, aprofundaremos a leitura do Tarô Furtado – inclusive, a Escola possui o curso direcionado para a leitura deste oráculo, confira as datas inbox – mas, por ora, ateremo-nos a três cartas, como nos é de costume.

Ao romper sua prisão, Morpheus percebeu-se nu, e fabricou novas roupas. Percebeu-se faminto, e alimentou-se de sonhos. Percebeu-se desejoso de vingança, e vingou-se. (2)


“Estou fraco... Sem minhas ferramentas...” Morpheus | Sandman #01


E então ele se viu sem três itens que lhe concediam identidade. Ele havia sido... Furtado, como todos somos, cedo ou tarde nessa vida; para tal furto, a ferramenta certa para a identificação. Após identificado o Ladrão, é hora de trazer de volta o que foi perdido. E Morpheus chama por Hecateae. Três Deusas que são uma. Três perguntas para um desejo. Três Ferramentas escondidas nas cartas do Furtado serão restauradas.


- Hah-hahah-hahah! Você ouviu isso, minha irmã? - Ooohooh hoh hoh hooh! Ele disse "obrigado"! Não se agradece ao destino, rapaz! - Seus problemas estão apenas começando!

Hecateae | Sandman #02


O primeiro item, a Donzela responde: a Algibeira de Morpheus está na mesa do Mago John Constantine. Ora, o que foi Furtado do Mago foi o chapéu, deixando seus cabelos, loiros e encaracolados, à mostra ao Sol; a faca [/e o queijo] e a moeda. Há uma barganha, e isso ninguém pode furtar ao Mago.

A algibeira é recuperada e o descanso devolvido. A areia convida a morte. A areia leva os sonhos. É importante lembrar que as metáforas possuem sentidos múltiplos nesse texto, assim como no Tarô Furtado: o que significa, para você, ter o Mago longe de tais apetrechos? O que é perder chapéu, moeda e faca, e manter a algibeira de Morpheus?

O segundo item, a Mãe responde: o elmo, este foi negociado com um Demônio. O elmo é tal como a Carruagem de Morpheus, feito dos ossos de um deus morto, feito por suas próprias mãos, um feito que lhe permite caminhar em segurança entre os mundos. No Tarô Furtado, o auriga perde os olhos. Há um vazio como em uma estátua grega. E Morpheus caminha, lenta e seguramente, sem elmo, mas com majestade, no Reino dos Caídos, guiado por Etrigan até a presença de Morningstar.

E, Soberano sem elmo, auriga sem olhos, Morpheus, outrora conhecido como Kai’Ckul, encontra Nada, seu amor de dez mil anos antes. E reconhecemos o quão implacável pode ser o Senhor dos Sonhos e o quão hábil pode ser Neil Gaiman em costurar histórias.


- Kai'Ckul! Você ordenou que me confinassem aqui! Seu perdão poderá me libertar! Eu lhe imploro... Você não me ama? - Dez mil anos se passaram, Nada. Sim, eu ainda amo você. Mas ainda não lhe dei meu perdão!

Kai’Ckul/ Morpheus | Sandman # 04


E para nós, que do Sonho criamos metáforas, o que significa perder os olhos, caro leitor? Seria a mão firme sem o olho que lhe guia? Em uma das batalhas mais lindas da história, Morpheus enfrenta Choronzon no campo de batalha escolhido por seu oponente – a Realidade (3). Eu recomendo veementemente a leitura dessa história – ou, se preferir, assistir o vídeo resumido: https://youtu.be/FYRKO5j1B60 .

De posse de seu elmo, Morpheus, o de olhos de galáxias, atravessa a passo seco a planície do Inferno e protege-se em sua jornada seguinte, de volta ao plano mortal.

O terceiro item, a Velha responde: o Rubi, a Pedra do Sonho, passou de uma mãe para um filho. Um filho preso em Arkhan.


O rubi transformava os sonhos em matéria. Fazia com que se traduzissem em formas que podemos reconhecer nesse mundo. Também controlava os sonhos em seu estado puro. Seus sonhos... Os de qualquer pessoa.

Dee | Sandman #05


Doutor Dee, Johnny Dee, John Dee. Um nome real para terrores reais. Tendo manipulado o rubi em laboratório, não havia mais identidade de Morpheus na joia, apenas o poder. E no primeiro toque, Morpheus quase é destruído pela segunda (?) vez. Mas há uma segunda chance.

Pego meu baralho e observo o pingente do Imperador, que no Tarô Furtado perde a águia de seu escudo, emblema de seu poder, como o Rubi o é de Morpheus. Entendo. E o Sonho dos Perpétuos enfrenta a pior de suas batalhas: sua majestade versus o seu poder com a identidade de Dee, concentrado que foi em um ponto vermelho como sangue.


- Por quê? Por que fizemos isso? - E por que nós, desgraçado? Por que está fazendo isso conosco? Você vai matar a gente. - Por quê? Porque eu posso.

Dee | Sandman #06


Um Imperador sem sua majestade é um tirano. Só os tiranos tem medo, e seu medo desperta o pior que existe em si. Tenho certeza, leitor, que você se recorda de alguma tirania.

Sua ou de outrem... Sua ou de outrem. Ela esta lá, lá no Imperador, com um rubi e sem águia no escudo. [Só para constar: Sandman #06 não é para os de estômago fraco. São vinte e quatro horas narradas com o mais absoluto terror. Leiam por sua conta e risco. Até mesmo Destino hesita em virar a página.]

Num acesso de fúria, o Rubi é esmagado pelo seu atual dono e o poder volta às mãos certas - do dono de e para sempre. Como o Imperador possui como sombra a dissolução representada pelo décimo terceiro Arcano, destruir a fonte é recobrar a força. E aqui conhecemos outra faceta de Oineiros: Ele pensa sobre os humanos como nós humanos pensamos sobre formigas.

E Arkhan, por uma noite, cessa os gritos e lamúrios. Arkhan dorme. E o Tarô Furtado devolve o que foi perdido a seus donos.

Durma. Amanhã – daqui a pouco – é terça feira do resto dos seus dias. O meu nome é Emanuel J Santos e hoje eu dormirei o sono dos justos.


REFERÊNCIAS

Sandman. #01 a #07. Tarô Furtado. E os sonhos - de desperto e adormecido.


(1) Para aqueles que já leram a série original, não é difícil separar Morpheus de Daniel, mesmo entendendo que só existe um Sonho dos Perpétuos desde o início dos tempos. Para os demais leitores, por gentileza, leiam a série original – eu não seria capaz de desfazer um laço tão bonito, que guarda um dos maiores presentes da série, sem sentir que estou fazendo algo inadequado para nossa conversa. Certos prazeres devem - e serão - mantidos intactos. (2) Reiterando o que falamos no texto da Morte, a palavra Dela é final. Apesar de ter sido aprisionado por outra pessoa, a vingança de Morpheus recaiu apenas sobre o filho, já que o pai, o verdadeiro responsável, havia já partido para as Terras sem Sol, morada de sua irmã mais velha. (3) Sugiro a leitura de Sandman: Prelúdio, para o entendimento do quanto esse campo de batalha é familiar a Morpheus... E o quão perigoso ele foi na ocasião.


Emanuel J Santos


"(este texto foi publicado originalmente aqui: https://www.facebook.com/Saturnalia/photos/a.10150369632207293/10155493433057293/; a imagem é de autoria do Emanuel; o Corvo da Saturnália foi criado pelo Gabriel Breviglieri).

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