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Foto do escritorEmanuel Santos

Um tarot para Sandman - texto 4




UMA MANIVELA, UM RELÂMPAGO E UM CACHORRO


Segunda feira, dia de desfazermos os nós da memória afetiva que nos liga a Sandman. Eu sou Emanuel J Santos e hoje falaremos do irmão do meio dos Perpétuos: Destruição, o Pródigo.

Destruição aparece no arco Vidas Breves, que comporta as revistas #41 a #49. Este personagem é enigmático – levando-nos a pensar sobre o quão relativos são os poderes dos Perpétuos. Toda moeda tem dois lados, ele diria, Delirium também. Ainda que Destino esteja acorrentado ao livro, Morte considere sua função necessária e Sonho se veja sempre em crises existenciais no que concerne à sua obrigação, Destruição destronou a si mesmo, deixando para trás sua função trezentos anos antes. E são eles, os Quatro, mais antigos que os próprios Anjos.

O segundo ponto que devemos reconhecer, a essa altura de nossa jornada, é que, entre os Perpétuos, não é de bom tom interferir nos assuntos uns dos outros (ainda que, eventualmente, Desejo o faça com Sonho).


[Destruição] - (...) Não necessitavas fazer aquilo. [Morpheus] - Eu não te digo como deves tratar teus assuntos, irmão. Não vejo razão para que me digas como tratar os meus.

Sandman #44


[Morpheus] - Isso foi realmente necessário? [Delirium] - Eu não te digo o que... hã... fazer, digo? Você fez um monte de coisas piores do que isso, o tempo todo. Um monte e um monte e um montão.

Sandman #45


Há um terceiro ponto, e esse merece real atenção: Nem sempre é bom deparar-se com um Perpétuo. Cuidado com o que deseja... Ou com o que é incapaz de evitar.


Para não perdermos o costume, já aviso que esse texto pode conter spoilers. Curiosamente, diálogos. Que eles não destruam seu prazer na leitura da história original.


A aparência mais recorrente de Destruição é a de um robusto homem ruivo, na pujança de sua masculinidade. Já foi dotado de barba espessa, mas neste arco da história está escanhoado. Sua risada é sonora, como a de Um Certo Capitão Rodrigo (Cambará) – livro que recomendo veementemente para vermos alguém que possui Destruição como orago. Apesar do nome, não se compraz na dissolução per se, muito pelo contrário: aprecia todas as criações, todas as artes – e não tem talento para nenhuma, (in)felizmente. Mas tem disposição! Destruição é aquele cara que chega e você já quer ser amigo. Mal lhe conhece, mas passa os braços ao redor dos seus ombros e lhe paga uma cerveja com um sorriso no rosto. O problema é seu caráter aziago, deliberadamente construído, tão bem demonstrado na jornada de Delírio e Sonho para encontrá-lo. Todos, absolutamente todos os envolvidos, sofreram com essa busca. Vidas breves... O tempo de uma vida. Delirium buscou, um a um, seus irmãos, por ordem de idade – só que ao contrário. Desespero rasgou seu olho e sentiu o humor vítreo escorrer como lágrimas. Desejo foi quem é, e sequer se importou. Sonho, recém deprimido e fazendo cair chuvas como pérolas, como lágrimas, como torrentes em seu reino, aceita acompanhar Delirium, não antes desta ameaçar procurar Morte, Destino ou pior: partir sozinha. Mas, como eu disse, todos, absolutamente todos os envolvidos, sofreram com essa busca. Levando em consideração que estamos falando de um Perpétuo que partiu sem deixar rastros há trezentos anos, quantos de nós viveriam para lembrar-se disso? Acredite em mim, ou acredite na história (tanto faz): há entre nós alguns que poderiam contar. Ah sim, eles poderiam, se não evitassem lembrar que lembram demais.


[Delirium] - Oh? Eu não sabia que se pudesse deixar de ser um Deus. [Morpheus] - Pode-se deixar de ser qualquer coisa. [Delirium] - E o... hum... Nosso irmão? [Morpheus] - ...

Sandman #43


A primeira carta que Destruição vira sobre a mesa, confesso, foi a última que pensei [quase ouço, ou ouço mesmo, Delirium dizer: “Se estaria no último lugar a ser procurado, procurasse lá primeiro!”] é a Roda da Fortuna. O Arcano X, tal como Destruição, tem como domínio a mudança, mais que a dissolução. Nada é estável por muito tempo em sua presença, falemos de Roda ou do Perpétuo; e Destruição aproveita o instante – desde o nascimento de uma estrela até a explosão de uma galáxia, em tudo há sua mão, seu mistério, sua graça. Na imagem de Marseille, a Esfinge porta a efígie de Destruição – a Espada – enquanto criaturas sobem e descem pelos raios da roda, movidos por uma manivela em cuja empunhadura está a mão do Pródigo.

Vê? Não? Em Marseille, quase tudo está implícito – esse baralho mais sugere que revela, e aí reside toda a sua beleza. Crowley, por sua vez, trouxe pela mão de Frieda Harris, a partir do padrão Marseille, a imagem evidenciada. Consegue ver, nessa carta, uma mão fechada? Entre seus significados mais convencionais, aqueles que a gente encontra no livretinho que acompanha o baralho, A Roda da Fortuna tem “mudança”.


[Delirium] - Hum. Qual é a palavra pras coisas não serem as mesmas? Sabe, eu tenho certeza de que tem uma, não? [Delirium] - Deve ter uma palavra para isso... A coisa que faz a gente saber que o tempo está acontecendo. Tem uma palavra? [Morpheus] - Mudança. [Delirium] - Oh. Era isso que eu temia.

Sandman #43


Entre os irmãos, Destruição é o único que, aparentemente, teve uma relação estável duradoura – apesar dos naturais “problemas de família” que vieram com isso. Uma das coisas notáveis, entre os Perpétuos, é sua solidão em seus domínios... Mesmo Morpheus apaixonando-se vez ou outra e tendo tido um filho. Destruição não aceitaria um padrão como algo a ser obedecido, obviamente.


[Ishtar] - Eu amei seu irmão. Amei de verdade. [Morpheus] - Você era a Deusa do Amor. Eu não esperaria outra coisa.

Sandman #45


E assim, Ishtar despenca da Torre, a segunda carta de Destruição e a primeira que pensei que lhe caberia. Ora, não poderia eu estar mais enganado diante de um Senhor da Mudança - Fortuna, não Catástrofe. Mas não é possível tirar a Torre do seu mirante.

O evento que a Torre representa – o acidente atmosférico, o lamber da terra em língua de relâmpago, a destruição da estabilidade – é uma das experiências mais traumáticas que podemos passar na vida. Ninguém, absolutamente ninguém, escapa ileso e incólume à Torre (como ninguém, absolutamente ninguém, escapa ileso e incólume à Destruição). Entretanto, isso nos leva a questionar o que há de efetivamente negativo nisso. O Tarô (assim como a vida) não é um instrumento maniqueísta. Não há cartas absolutamente benignas, assim como o oposto é verdadeiro. Há um aspecto luminar na Torre tanto quanto existem aspectos sombrios no Sol, por exemplo, apesar de costumeiramente a primeira ser considerada negativa e o segundo, positivo.. Falando do efeito que a Torre gera, não é absurdamente chocante quando o exame de gravidez dá positivo quando se deseja muito ter um filho? Não é surpreendente quando se passa em um vestibular ou concurso em outro estado, e é necessário largar tudo e começar de novo? E o que dizer de quando se recebe um pedido de casamento? Ou mesmo quando tudo o que você pensava de alguém é, na verdade, apenas uma impressão e você encontra um inesperado amigo aonde supunha não haver, na melhor das hipóteses, nada a declarar? Entretanto, e normalmente, o choque nos leva à catatonia e supomos, como manda o livretinho, que a Torre é uma carta negativa - e, por determinado mirante, é mesmo. A catástrofe aconteceu. O mundo ruiu. [O mundo ruiu e ainda estamos de pé.]

Ou, como Ishtar, dançamos até implodirmos todos os mundos criados dentro de nós por amor.

Sonho e Delírio encontram Destruição. Não sem um preço, não sem um óbulo, não sem um Oráculo indicado por Destino. A primeira a ser tocada foi Deleite. A segunda, Desespero. O terceiro foi Morpheus. Há sangue nas mãos e lágrimas nos olhos. Qual é a sensação de pagar um preço alto demais por algo que não se quer obter?

- Tomei uma decisão. Posso viver com ela. Destruição | Sandman #48


Destruição abandonou seu posto, mais conscientemente que qualquer um de nós trilhará seu próprio caminho pelo tempo breve de uma vida. Seria um exemplo a ser seguido?


“Estou certo de que [meus domínios] ainda estão lá, a seu modo. As pessoas e coisas ainda são criadas; ainda existem; ainda são destruídas. As coisas ainda mudam. A única diferença é que ninguém está regendo o processo. Não depende mais de mim. Depende deles. Eles podem se destruir sozinhos. Não é minha responsabilidade. Não é minha culpa.”

Destruição | Sandman #48


Destruição vira uma terceira carta. Primeiro, eu vejo as Estrelas, todas elas, desde o princípio dos tempos, nos céus de todos os mundos; depois, uma delas brilha no centro de uma lâmpada, de Virgem e de Eremita.

A vida, como o tempo, é uma jornada através das trevas.

Não tenho ideia de quanto será minha duração. Preciso manter a espada e o lago. Mas deixarei o resto para trás.

Destruição | Sandman #48


E por fim, ele pega sua trouxinha, com a Espada e o Lago, e vai embora. O cão ladra, morde suas vestes... Pede para ele ficar. Ele diz ao cão que fique com Delirium.

E vai.


Meu nome é Emanuel J Santos. Há coisas que aparentemente nunca mudam, como os nomes. Mas apenas a mutação é imutável.

Até semana que vem.



P.s.: este texto foi publicado originalmente aqui: https://www.facebook.com/Saturnalia/photos/a.10150369632207293/10155529836877293/; a imagem é de autoria do Emanuel; o Corvo da Saturnália foi criado pelo Gabriel Breviglieri.

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