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Foto do escritorEmanuel Santos

Um tarot para Sandman - texto 7




ANTES E DEPOIS. UM CACHORRO. TUBARÕES.


Chegamos ao fim [?] de nossa série sobre os Perpétuos. Eu sou Emanuel J Santos e hoje teremos uma conversa cartomântica sobre a mais jovem entre os Sem Fim. Deleite-se. Podem haver spoilers, ou não. Talvez. Quem sabe não estaríamos delirando sobre isso?

Nada muda.

Em algum lugar, no fundo da cabeça da jovem... ...ela pode se ver gritando. Entrando | Noites Sem Fim


É difícil definir a aparência de Delirium, pois ela muda de acordo com seu humor as cores e o corte do seu cabelo, iridescente na maior parte das vezes, ou não. Seus olhos são verdes e azuis e da cor que ela quiser. E ela é jovem, mas pode ser madura, mas é uma criança, embora desafie até mesmo O Mais Velho. Eu não sei o que você vê quando você fala com ela. Mas, pensando bem... O que você vê? Será que posso confiar no que vejo como você confia no que vê? Mas... Espera... Você confia no que vê? Ou eu devo confiar que você confia no que vê como se você visse como eu vejo? Do que é mesmo que estávamos falando?

O terceiro olho. Você passa fazendo tudo o que pode para abri-lo e então, um dia, a porra se abre e seus amigos riem da sua cara quando você lhes diz que pode ver a alma de cada um deles por trás dos olhos ardendo como arco-íris. Então, o quarto olho se abre e o quinto também, bem como aqueles na ponta dos dedos e tudo, nas beiradas, cintila como arco-íris... Ele tem de partir. Entrando | Noites Sem Fim


Seu reino? Pegue todas as suas aquarelas, todos os seus lápis de cor, todos os guaches que você tem naquela caixinha guardada no pré primário da infância, talvez no maternal, talvez que uma tia muito bacana que era professora ou diretora (eu não lembro bem) te deu. Pegue uma folha de papel em branco, ou aquela que um dia você desenhou e todo confiante, mostrou para seus pais com um sorriso no rosto e disse “fui eu que fiz!”. Agora abra os potes.

Deixe a gravidade reger a orquestra de cores no papel. Sua tia do maternal ou sua tia de verdade que é parente dos seus pais, de um deles só, mas também acaba sendo dos dois, e seus pais também, ficariam orgulhosos de você saber sozinho chegar lá, no reino dela. Ou talvez eles ficassem preocupados. Mas não se preocupe, eles farão de conta que estão orgulhosos. Seu símbolo é como o seu reino. Em certa ocasião, ele ficou preto, preto como a Morte. E a Morte fez Morpheus ajeitar as coisas. E as coisas se ajeitaram, pelo menos por um tempo.

Estalo os dedos, um por um, e de novo. Eu gosto de estalar os dedos quando eu estou escrevendo. Você já conseguiu estalar os dedos duas vezes? A primeira é fácil e faz um barulhão. A segunda não faz barulho, e dói. Foi mais ou menos assim que Deleite se tornou Delirium. A primeira vez, à primeira vista, foi fácil, foi gostoso, foi um alívio ser Deleite. A segunda doeu.

A primeira carta de Delirium é a última de Destruição. Eu acho curioso que existam pessoas que se esquecem que as cartas do Tarô tem nomes. Os nomes servem para chamarmos pelo nome, não é? Não é assim que eu falo “cachorro!” e um cachorro atende, abanando o rabo e com a língua para fora e pulando e pululando na minha direção? Mas e se o cachorro for gente, será que a parte gente do cachorro também atende se eu chamar de gente? Um dia, quem sabe, eu vou ter um cachorro que eu chame de gente, porque eu já chamei muita gente de cachorro. Mas o Arcano Zero é o Louco, e tem gente que trata o Louco como a carta mais importante do baralho, a que rege todos os descaminhos e meandros entre as cartas, todos os viezes, todos os revezes, todos os espaços entre as letras desse alfabeto em imagens, todos os vazios – ele é o Zero – entre os números, o caos que permite a ordem existir. Mas a gente não pode esquecer (presta atenção em mim agora, eu vou falar algo importante!), a gente não pode esquecer que Louco ainda tem um significado que não é resumido em uma carta. Louco é aquele que está abraçado com a loucura, não é? Acho que sim, acho que louco é aquele ali que a gente entende como marginal. Louco é aquele que está à margem, que está do lado, que a gente não olha quando passa perto porque vai que é doença e a gente pega e aí já era, a gente abraça e fica junto? Deve ser como se apaixonar, não deve? A gente não sabe mas de repente sabe e catapoft! Tudo faz sentido mas na verdade não faz e a gente tá ali, chegamos no labirinto mas esquecemos a cordinha para saber como volta. Então a gente segue em frente torcendo pra em frente descobrir no fim o caminho pro começo.

Ela ainda está lá dentro. O que ela quer saber é o seguinte. Por que há tanta gente lá dentro com ela? Entrando | Noites Sem Fim


O problema é que o caminho traz a segunda carta de Delirium. Você olha no descampado e percebe que é tipo um deserto porque você olha para todos os lados e tem paisagem, mas poderia ser gelo, poderia ser areia, poderia ser o azul do mar todo cheio de peixinhos e arraias e golfinhos e... e... TUBARÕES! Eu tenho medo de tubarão, mas eu nunca mergulhei de ver tubarão porque eu não sei nadar. Será que o tubarão escolhe para morder só gente que sabe nadar? Se ele escolhe assim eu posso nadar tranquilo porque eu não sei nadar. Se eu fosse um peixinho e soubesse nadar, acho que o tubarão me levava pro estômago dele que fica junto com ele no fundo do mar.

“Ei, manhê! Adivinha o que eu sou! Um Carcharadon carcharias!” Entrando | Noites Sem Fim


Mas eu tava falando – olha, acabou que eu não me perdi tanto assim – eu tava falando da segunda carta porque a primeira já ficou ali atrás e eu sei que você leu porque você chegou até aqui, juntando todas as letrinhas e espaços e você deve falar português porque se você chegou até aqui é porque você deve ler em português senão você já tinha desistido. E a segunda carta é uma carta bonita de ver e que dá medo de interpretar, tipo os tubarões. Arcano Dezoito, como a maioridade penal que já tentaram diminuir pra dezesseis mas até agora eu acho que não deu muito certo porque continua dezoito. E veja lá, Barrabás, não aquele da Bíblia, mas aquele que era o cãozinho do Destruição. O Barrabás fala, sabia? Se você falar com ele, eu acho que ele responde, mas eu já falei com muitos cachorros e nenhum deles era o Barrabás porque nenhum deles respondeu. Se eu conseguir achar o Barrabás um dia, eu te conto. Ou não, talvez eu guarde esse segredo só pra mim, bem guardadinho embrulhadinho em guardanapo de papel em que as pessoas escrevem telefones ou desenham ou fazem poesia e música ou limpam a boca do molho de cachorro quente. Cachorro quente não é o Barrabás, mas eu sei disso porque eu sou sabido também.

Ele sabe coisas demais. Entrando | Noites Sem Fim


A terceira carta de Delirium lembra que um dia ela não foi Delirium, mas a gente não era ainda nem pó de estrelas para saber como foi isso. Talvez a gente ainda era estrela quando ela era Deleite. Ela sabia que ela era Deleite e ela sabia que ela era boa. E todo mundo gostava dela. Na verdade, todo mundo ainda gosta mas ela mudou e só de vez em quando ela lembra que um dia ela não foi quem ela é hoje, mas isso não tem importância, logo ela esquece e a gente também, porque Delirium não gosta de ser contrariada. Então a carta dela na verdade é uma mas se esconde na outra do mesmo jeito que a outra se esconde na primeira. Se você olhar pro céu de noite, você vai ver um monte de pontinhos brilhantes como pedrinhas de joalheria. Essas pedrinhas são grandes e grandonas e gigantes e muito maiores do que qualquer coisa que você já viu, exceto as pedrinhas quando você usa uma lupa. Não é uma lupa de verdade, é aquelas coisas grandes que parecem lupas mas não servem para queimar folhas, servem para olhar o céu, sabe? Eu não lembro o nome, mas não importa, eu sei que você é sabido e já entendeu o negócio que eu quero dizer. Então, esses negócios grandes que servem para olhar o céu fazem as pedrinhas serem grandes. Na verdade, elas são grandes e não são pedrinhas, elas são bolas de gás inflamável e inflamado que ficam queimando e queimando e mandando luz que nem as pedrinhas da joalheria, por isso eu chamei de pedrinhas. Mas se você não estiver entendendo, não tem problema, deixa a noite ir embora que depois vem uma pedrona gigante que apaga todas as pedrinhas. Mas não é bom olhar direto pra ela.

Sábio imundo! Saiba mundo! Atenção pra mensagem de todos os organismos vibracionais. Entrando | Noites Sem Fim.


Com um pouquinho de esforço você vai ver que todas as pedrinhas são pedronas e que a pedrona nada mais é que uma das pedrinhas, a diferença é que quanto mais perto mais grande e quanto mais longe mais pequeno de verdade. O problema não são elas, o problema é você que vê tudo errado. Olha de novo. Olha direito.

Minha missão é relatar tudo. Entrando | Noites Sem Fim.


E o texto chega ao fim, mas não é bem um fim na verdade, porque se você chegou até aqui um pouquinho desse texto vai com você também, e aí esse texto fica pra sempre e sempre e sempre mesmo dentro de você até você sentir vontade de contar para alguém que um dia você ouviu a canção dos peixes palitando os dentes dos tubarões.

Eu ouvi as línguas do apocalipse, e agora acolho o silêncio. Entrando | Noites Sem Fim


Eu sou, e ainda sou, Emanuel J Santos.

E você, quem é?


REFERÊNCIAS

Sandman: Noites Sem Fim. Barueri, SP: Panini Books, 2014.


P.s.: este texto foi publicado originalmente aqui: https://www.facebook.com/Saturnalia/photos/a.10150369632207293/10156030898167293/; a imagem é de autoria do Emanuel; o Corvo da Saturnália foi criado pelo Gabriel Breviglieri.

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